Que bom que alguém lutou por nós

 

Raul Seixas foi o cara quem me levou a conhecer melhor e mais profundamente o golpe de 64. Eu tinha 11 ou 12 anos e era maluca pelo Maluco Beleza. Foi ouvindo “Mamãe eu não queria” e “Metrô linha 743”, e lendo sobre suas músicas censuradas e a tortura que sofreu dos milicos, que passei a me inteirar deste passado tão recente que “terminava” na mesma época em que eu nascia. Não tenho memórias de estudar sobre a ditadura militar brasileira na escola. Talvez tenha matado esta aula. Eu matava muitas aulas. Ou talvez o assunto realmente passou batido no colégio São José Notre Dame de Não-Me-Toque/RS.

Mas eu pensava lá no final dos anos 90: ufa, que bom que passou, né? Sorte a minha não ter vivido esta época. Que bom que alguém lutou por nós.

Ao mesmo tempo, me enchia de admiração e gratidão por aqueles que resistiram, que lutaram, que questionaram, que se expuseram ao perigo iminente. Por aqueles que morreram e “sumiram” feito fumaça no ar.

Então veio 2018 e o que parecia passado se tornou presente. Até hoje me lembro que, conversando com uma amiga nos primeiros meses deste ano fatídico, ela perguntou: “Jana, você acha que o Bolsonaro ganha?”. E eu, na minha patológica ingenuidade, respondi: “Tá louca? Capaz!”.

Conhecemos o resto da história.

Hoje, quando me lembro da Jana de 12 anos impressionada com todo aquele horror da ditadura, que pensava “que bom que passou, né?”, “que sorte a minha não ter vivido esta época”, eu me vejo aqui: em um Brasil com mais de meio milhão de cadáveres e um presidente que debocha da vida e do povo, de mim e de ti e daqueles que amamos e morreram por conta de um vírus para o qual já existe vacina HÁ MESES. Mortes que poderiam facilmente ter sido evitadas. Um desgoverno que, em pouco mais de 15 meses, já matou milhares de vezes mais que a ditadura em 21 anos. Uma tropa de aloprados carniceiros que preferem cloroquina e propina e não vacina. Um Brasil onde muitos ainda aplaudem e acham bonito os desmandos assassinos do genocida-chefe e mugem feito gado atrás do berrante.

São, novamente, anos de chumbo. De escuridão e obscurantismo. De trevas e dor e luto e raiva.

“Que bom que passou, né?”. Só que não.

Nestas horas, recordo-me mais uma vez daqueles que lutaram e resistiram antes de eu nascer. Que ainda estão aqui, a lutar e resistir. De fato, nenhuma conquista é vitalícia, ainda mais as relacionadas a direitos humanos. Bastou uma distração, uma soneca fora de hora e f*deu.

Por que escrevo isso? Justamente porque penso naqueles que lutaram contra a ditadura. No que eles acreditavam? Como se sentiam? Por que não desistiram?

Eles pensavam em nós?

Com certeza pensavam ou não teriam se dado ao trabalho. E se eu nasci em um país que engatinhava na democracia, foi porque muitos sangraram, doeram, morreram e desapareceram antes de mim.

Logo, eu pergunto: teremos, hoje, o direito de descer do ringue? De perder a fé e a esperança? A quem convém que a gente desista, se ajoelhe e se entregue? Que a gente vá embora? Que a gente lave as mãos?

Eu acho que não temos esse direito.

Temos é o dever e a obrigação de resistir. De retribuir o que muitos fizeram por nós, antes de nós. E a resistência vai muito além da luta coletiva – apesar de a luta coletiva ser absolutamente essencial. Tem a ver com o indivíduo. Tem a ver contigo e comigo.

Tem a ver com continuar acreditando que somos maiores que essa merd@ toda. Que não estamos sós. Que o dia sempre amanhece e a primavera sempre chega e a chuva sempre passa e o sol sempre renasce. SEMPRE. Não é metafórico. É real e cientificamente comprovado.

Se você se sente impotente diante de tudo, anota essa dica: continue acreditando – essa é a resistência em seu estado puro e natural.

Continue criando, amando, sentindo, tocando, gozando, chorando, beijando, sorrindo, se emocionando, abraçando, observando, dançando, rimando, brincando. Mantenha o seu pulso pulsando e o seu sangue correndo vermelho e quente em suas veias.

Continue vivo, por dentro e por fora, por favor!

Nós devemos isso ao futuro.

Para que, amanhã, nossas crianças possam pensar sobre hoje: “que bom que passou, né?”.

“Que bom que alguém lutou por nós”.



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