“Não é porque alguém pensa diferente de você que é seu inimigo”

Temos ouvido muito essa frase ultimamente – em especial desde 2018, quando a dita polarização no Brasil alcançou a maioridade e se tornou presença frequente e incômoda nas rodas de conversa, nas mesas de bar, nos almoços de família, nos grupos de WhatsApp, na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê.

E de fato: não é porque alguém não concorda comigo que deve ser declarado meu inimigo.

O problema é que, na maioria dos casos, o que parece apenas uma inocente opinião é, na verdade, um pequeno discurso de ódio enfeitado. Se você torce para o Grêmio e eu para o Inter; se você curte sertanejo e eu não; se você gosta de uvas passas no arroz e eu detesto; se você não é fã do Luis Fernando Verissimo, como eu sou; tranquilo. Vamos ser amigos pra sempre, vem cá e me abraça. A questão é que não estamos falando de futebol, música, comida e literatura. Estamos falando de vidas e de gente. Quando alguém defende o genocida, por exemplo, depois de tudo, inclusive de ele rir em cima do túmulo de 300 mil brasileiros, não se trata de “opiniões diferentes”. Trata-se de posições diferentes. Diferentes e incompatíveis.

Se a criatura acha que bandido deve morrer; que quem mora na rua mora porque quer; que a mina que foi estuprada pediu porque usava saia curta; que os imigrantes estão aqui para “roubar” nossos empregos; se a criatura debocha da luta das minorias; se faz piada de gay, de negro, de gordo, de índio; se afirma que a mulher apanha porque gosta; se defende a ditadura; se acredita que a Igreja está acima do Estado e da Constituição; bem. Aí essa criatura não só pensa diferente de mim. Ela defende ideias que eu abomino porque excluem e matam.

Então, sim, esta criatura não será minha amiga, não importa quem ela seja, porque definitivamente lutamos em lados opostos do ringue.

Você pode dizer: ain Janaína, que exagero! Não é porque a pessoa faz piada de negro, gay, gordo e índio que ela é má. Só porque o cara curte a ditadura e defende a censura não significa que ele é ruim. Não é porque o tiozinho quer matar o moleque que roubou um botijão de gás na sua garagem que ele não é do bem.

Esse é o problema, meus caros. Estamos acostumados a olhar para o Mal com M maiúsculo – o grande e terrível e cruel MAL. Terroristas que explodem criancinhas são maus. O Champinha é mau. A Suzane von Richthofen, o casal Nardoni, o Elias Maluco, o Maníaco do Parque. Pessoas que cometeram crimes hediondos, chocantes, horripilantes. Inquestionáveis. Eles são maus! E não meu amigo, meu irmão, meu vizinho, meu colega, meu primo.

Esquecemos, porém, do mal com m minúsculo; aquele cotidiano, escondidinho em pequenas atitudes e palavras, disfarçado atrás de um aspecto civilizado, oculto em meio a palavras bonitas, brincadeirinhas e idas semanais à igreja.

Nós não queremos ver nossos queridos como alguém mau porque dói.

Entretanto, vivemos tempos de máscaras caindo – e peço perdão pelo infame trocadilho. Estamos nos deparando todos os dias com o mal com m minúsculo, estampado no rosto de pessoas que sempre amamos e respeitamos. De 2018 pra cá eu vi (e você também viu) amigos e amados, parentes e parceiros, mostrando um lado que, sinceramente, eu nunca tinha reparado. Ou quem sabe tinha, em sutis sinais aqui e ali. Nem sei mais.

Então desculpe se eu não quero ser amiga de quem trata mal a empregada, o garçom e a caixa do supermercado. Lamento se eu me recuso a dividir a mesa com quem ainda defende o genocida. Sinto muito se eu me nego a conviver e interagir com quem conta piada de negro, de gay, de gordo, de índio; com quem escolhe não dar um prato de comida ao faminto porque isso é “assistencialismo”. Perdoe-me se eu não aceito receber em minha casa, em minha vida e em minhas redes sociais saudosistas da ditadura, a galera da meritocracia e do estado mínimo, aquele pessoal que adora chamar os outros de “vagabundos” e fazer arminha com a mão.

NÃO. SÃO. OPINIÕES. DIFERENTES.

São posturas opostas, formas antagônicas e incompatíveis de ver a vida, o mundo e os outros.

Não é porque alguém defende o indefensável que será meu inimigo. Mas com toda a certeza não será meu amigo simplesmente porque eu não quero.

Conviver com pessoas que não se importam com pessoas me intoxica e me adoece.

E se alguém me intoxica e me adoece, não pode ser meu amigo. 

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