Passadores de pano não passarão


Certa vez, escrevi um texto contra a homofobia e uma leitora comentou que achava muito bacana eu me envolver em lutas que não são minhas.
Afinal, se eu sou heterossexual, branca e classe média, o que tenho a ver com os LGBTs, com os negros, com os índios e com os periféricos, não é mesmo?
Bem, eu tenho TUDO A VER, assim como ela, assim como tu, como nós, como vós e como eles.
Impossível pensar uma sociedade melhor e mais justa PRA TODOS (inclusive para os fanáticos e escrotos em geral) se continuamos acreditando que “eu não tenho nada a ver com isso”.
Precisamos parar de assobiar e sair de fininho, nos descolando dos problemas que nos cercam como se não vivêssemos em comunidade e não dependêssemos também do coletivo.
A vizinha está apanhando do marido? “Não meto a colher”.
O gerente pediu que o casal homossexual se retire do restaurante? “Não é da minha conta”.
O amigo fez um comentário machista? A amiga contou uma piada homofóbica? “E eu com isso?”.
O policial ou o segurança do supermercado está sufocando um homem negro rendido no chão? “Não é problema meu”.
Pandemia mundial com centenas de milhares de mortes no mundo? “E daí? Não sou coveiro nem obituário, a economia não pode parar, pra frente Brazil, salve a seleção”.
Especialistas em passar pano, olhar para o lado e fazer vista grossa, aparentemente não temos nada a ver com problema nenhum. Não queremos nos envolver em questões que não sejam estritamente nossas, temendo nos prejudicar no trabalho, com a família, na igreja ou entre os amigos. Quantas vezes não preferimos “ficar quieto para não se incomodar”? Eu mesma já repeti essa frase umas cem mil vezes ao longo da vida. Porém é assim, através da conveniente omissão, que consentimos com a violência que – adivinha? – vai e volta pra nós com a mesma força, de um jeito ou de outro, cedo ou tarde. Só aí achamos ruim, reclamamos, protestamos, fazemos um escândalo: quando o sapato aperta o nosso pé. Enquanto apertava o pé do outro, estava tudo beleza!
É necessário lutar contra a perversidade da sociedade – e esta perversidade se manifesta ao nosso redor o tempo inteiro. “A Sociedade” não é uma entidade sobrenatural; ela é formada por pessoas, por mim e por ti, nossos amigos, vizinhos e familiares. As hashtags são bem legais e tudo e tal, mas não são suficientes. É urgente, àqueles que têm um pingo de noção, humanidade e vergonha na cara, começar a se posicionar de fato, na prática, diante das barbaridades que se desenrolam embaixo do nosso nariz.
De modo que este texto é para você, que está perplexo e desesperado.
Este texto é pra dizer que você está certo em sentir raiva. Em ficar triste. Em chorar. Em perder o sono e a fome ou em dormir e comer o tempo inteiro. Se você está revoltado, você tem razão, irmão.
Entretanto, só peço que não se sinta impotente.
Impotentes nós não somos.
Temos a nossa voz, o nosso espaço, o nosso microuniverso, onde podemos transformar hashtags em ações.
E você sabe, e eu sei, que nenhuma ação, por menor que seja, passa impune: todas reverberam como as ondinhas que se formam, quando tocamos com a ponta do dedo a superfície da água até então parada.
Fale. Aja. Se manifeste. Se posicione, se reposicione. Rebata, revide, conteste, responda. Não na rede social, onde só iremos desperdiçar nosso tempo, saúde e energia com vozes que sequer sabem dialogar. Mas na vida real, o único lugar onde o que você faz, faz diferença.

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