Sobre se tornar


Em 1984, quando minha mãe descobriu que estava grávida de mim, lá se iam quase quatro meses de gravidez. Ela e meu pai ficaram bastante chocados, primeiro porque não queriam ter filhos e, segundo, porque tecnicamente não podiam ter filhos. Ao menos foi o que o médico disse. Ele estava enganado, obviamente. Caso contrário, eu não estaria aqui hoje, completando 34 anos e escrevendo este texto.
Talvez porque não queriam filhos, meus pais nunca idealizaram seus futuros filhos, de modo que eu nasci com uma liberdade bem atípica para a maioria. Eles não projetaram uma filha assim, assim e assado. Não fizeram planos sobre o que eu deveria ser quando crescer (“advogada como a mamãe ou empresária como o papai e etc.”). Não tinham decidido para que time eu deveria torcer, que tipo de música eu deveria ouvir, qual a cor de roupa eu deveria usar ou a religião que deveria seguir. Eles não ficaram fantasiando sobre o meu futuro, programando a vida que eles achavam que eu iria viver e depositando em mim, até então um bebê inocente, suas desilusões e sonhos interrompidos. Quando eu nasci, eles surpreenderam as enfermeiras do hospital ao optar por não furar minhas orelhas, pois acreditavam que, quando eu crescesse, poderia escolher se queria usar brincos ou não. A propósito, eu não quis.
Na escola, enquanto os outros pais iam implorar para que seus filhos não fossem reprovados, os meus mandavam me reprovar, sob os olhares atônitos das professoras: “se ela está mal no colégio, precisa repetir de ano, ué”. Quando tive de escolher qual faculdade cursar, não ouvi sair de suas bocas qualquer sugestão: “veja aí o que você prefere”. Quando decidi abdicar de um emprego formal e trabalhar com literatura, eles só disseram: “vai lá”. Quando, nas reuniões de família, os tios e avôs gabavam os outros primos, que estavam “ganhando um ótimo salário em uma ótima empresa, enquanto a Janaína, veja só, não sai do chão, literatura não dá dinheiro e nem futuro e blá blá blá”, eles apenas cagavam e andavam. E quando eu disse, alguns anos atrás, que não pretendia ter filhos, de modo que eles também não teriam netos, meus pais se entreolharam e responderam: “ok”. Sem dramas, sem cobranças, sem chantagem emocional. 
O fato de colocarem em minhas costas toda a responsabilidade pelas minhas escolhas – e pelas consequências destas escolhas, naturalmente – me deu uma percepção muito clara da minha autoridade em relação à minha própria vida. E isso me ensinou uma das lições mais importantes que aprendi sobre felicidade e liberdade (dois conceitos que, pra mim, se entrelaçam com força): se meus pais, que me conceberam, me criaram, me educaram, alimentaram e aturaram, não davam palpites sobre as minhas decisões, então ninguém poderia dar. Ninguém. Nem namorado, amigo, tio, avô e primo, marido, chefe ou vizinho, padre, pastor, ídolo ou guru. Os outros nada tinham que ver com o que eu queria, e também nada tinham que ver com os resultados gerados pelas decisões que eu tomei. Se quando eu acerto a culpa é minha, quando eu erro a culpa é minha também.
Hoje, completando 34 anos e dona de uma vida que foi escrita única e exclusivamente por mim, eu só posso agradecer aos meus pais, Sergio e Eliane, por terem me permitido ser quem eu sou. Porque eu gosto pra caramba de quem eu sou, e realmente odiaria ser outra pessoa. E eu seria, se eles dois não tivessem tido a coragem de criar uma filha que fugisse à sua imagem e semelhança; que tivesse vida e personalidade própria, espaço para experimentar e questionar, errar e acertar, e condições de escolher o que é melhor para si – mesmo quando não era.
E muitas vezes não foi. Centenas de vezes, na verdade. Errei rude, errei forte, errei feio, errei bizarramente – e, não satisfeita, repeti muitos erros também. Colhi cada semente que plantei: as que geraram lindas flores e saborosos frutos, e também as que só trouxeram espinhos, farpas, veneno e erva daninha. E em cada colheita, uma certeza: eu que plantei. Não foi minha mãe, meu pai, meu marido, amigos, vizinhos, chefe, padre, Deus, destino ou seja lá o que for. Eu. Somente eu. Dona e responsável pela minha vida. Pelos meus tropeços, tombos e ferimentos. Pelas minhas mágoas e cicatrizes. E também pelos meus triunfos, minha satisfação, minha paz, minha alegria.
Nestes 34 anos moldei, com a mais absoluta liberdade, a pessoa que eu sou. Uma pessoa que eu amo, entendo e respeito. Uma pessoa que eu não só aceito, como também admiro. Uma pessoa cuja companhia eu curto. De quem eu sou amiga, e que, justamente por isso, procuro tratar com carinho e consideração. Uma pessoa que eu escuto e amo.
Não é fácil se tornar quem a gente é, especialmente em um mundo que já estabelece, antes mesmo do nosso nascimento, quem seremos. Que machuca e encaixota as pessoas, ignorando sumariamente seu infinito e profundo universo particular, suas intermináveis camadas, sua gigantesca complexidade, seus medos, sua luz e sua escuridão.
Pai e mãe: obrigada por não me encaixotar. Obrigada por não ignorar tudo o que eu trago aqui dentro. Obrigada por me tratar como um ser independente, com suas próprias vontades e desejos – especialmente quando estas vontades e desejos não eram compatíveis com as vontades e desejos de vocês. Obrigada por me permitir nascer; não só literalmente, mas inteiramente.
E, Jana Lauxen: obrigada também. Por nunca soltar a minha mão. Por estar comigo na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, me amando, me respeitando e sendo fiel a mim em todos os dias de nossas vidas.
Feliz aniversário pra nós. Pra todas nós.


Postagens mais visitadas deste blog

“Não vou acrescentar 2020 na minha idade. Nem usei”

Não cobre o que você não dá

Esperança é seu nome