Conquista e privilégio
Conquista
e privilégio são dois conceitos que costumam ser confundidos, e é esta confusão
a raiz de muitos de nossos problemas enquanto país. Na conquista, você precisa
correr atrás, se mexer, sair da zona de conforto, arriscar, batalhar para
conseguir. No privilégio, não. No privilégio, você só precisa existir.
Por
exemplo: quando arrumamos nosso quarto, obtemos uma conquista, que é um quarto
arrumado pra gente dormir. Se não tivéssemos arregaçado as mangas e
disponibilizado nosso tempo para limpar o quarto, agora não teríamos um quarto
limpo. Mérito nosso. Porém, não poderíamos limpar o quarto se não tivéssemos um
quarto para limpar. O quarto é o privilégio. A faxina, o mérito.
Ocorre
que muitas pessoas altamente privilegiadas, por comodismo ou vaidade, julgam
que tudo o que são e possuem vêm do suor de seu esforço. Que tudo é questão de
merecimento. Misturam seus privilégios com suas conquistas, sem entender que é
infinitamente mais fácil conquistar quando se tem privilégios. Quem não tem um
quarto, afinal, não pode arrumá-lo.
Infelizmente,
vivemos em um país onde mais de 50 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da
pobreza. Onde direitos básicos, como moradia, educação e saúde, são totalmente
inacessíveis a uma gigantesca parcela da população, que vive em completo estado
de desumanização.
Assim
sendo, ter um lugar para morar, mesmo que seja uma casinha pequenina e simples,
é um privilégio. Comer todo dia, mesmo que não sejam iguarias finas, é
privilégio. Ter roupas para vestir, mesmo que não sejam caras e de marca, é
privilégio. Água encanada, luz elétrica, cama e cobertor? Privilégios, dos
quais milhões de brasileiros não desfrutam.
De
modo que, se você está aqui, lendo esta crônica (saber ler, aliás, é outro
privilégio) de barriga cheia, embaixo de um teto e usando roupas limpas,
sorria: você é um privilegiado. Como eu. Como a maioria das pessoas que eu
conheço, e que estão por aí falando em meritocracia, dizendo que “basta querer
para conseguir”, afirmando que só não arruma o quarto quem não quer. Sem nem
cogitar que milhões de brasileiros sequer têm um quarto para arrumar.
Nosso
Brasil é tão desigual que o básico, aqui, é privilégio. E é por isso que muitas
pessoas, que jamais dormiram na rua, que jamais passaram fome, que nada sabem
da miséria, não compreendem que, dado o contexto, são filhos amados e
privilegiados de uma pátria mãe que não é gentil com a maioria de sua prole.