Morreu um pouco de mim
É como um luto.
Uma sensação de ter perdido qualquer coisa importante demais para
se perder: um número de telefone de quem sabe o que eu não sei; uma esperança
tola de pertencer, de merecer, de aprender o que não é permitido entender.
É só o fim de algo cuja vida não resiste, não persiste e não procede
à morte.
Continuou escuro ao amanhecer.
Estou sem sorte, sem norte, sem bote, capote ou qualquer meio de transporte
para me salvar da tempestade forte que me engoliu sem eu perceber.
Entendo que não há jeito de deter o temporal e o luto; que a luta já
foi perdida; que não dá mais para vencer.
Sem resistir e nem me desculpar pelo transtorno, eu me entrego e tombo
pra dentro da escuridão do alvorecer.
Caio neste abismo e paro com este esforço inútil de continuar em
pé, fingindo força que nem tenho. Não nasci mártir, não sou fortaleza. Não
tenho certeza, linhagem ou nobreza. Sou correnteza a correr.
Não transformo mais a dor em raiva; só deixo doer. Abraço a
tristeza; não crio atrito e nem resistência. Não tenho a expectativa da grande resiliência,
que muda o enredo, trazendo a salvação final: “espere, não a enterre, ela ainda
respira!”.
Não disfarço meu medo e minha desorientação. Não faço piada com o
meu desespero; não finjo que lido bem com esta situação. O gosto amargo arranha
a língua e a garganta, faz tremer o corpo, gemer a boca, ranger os ossos e os dentes.
Por dentro, agora sou chão sem semente. Eles eram nossos, mas não.
Não importa o último ato do espetáculo; eu já perdi qualquer coisa
importante demais para se perder.
Então me entrego. Ao luto, sem luta. Sem armadura ou esconderijo;
sem estratégia, escudo ou plano B.
Eu não minto quando digo que só sinto – como sinto! – e sangro.
Deixo arder a pele machucada; danço conforme a melodia; canto
junto a triste sinfonia regida por quem encontra a porta fechada.
Eu, apenas um amontoado de moléculas aglutinadas, perdi um pouco
de mim que eu gostava.
Desnutrida, envenenada, dolorida e desacreditada, assim estou eu
em frente à saída bloqueada.
Descrente e sem deus, é duro admitir que aquele bando não era meu.
Deitada no chão, lá no fundo do mundo, observo meu peito a
mover-se pra baixo e pra cima.
– Espere, não a enterre; ela ainda respira!
Dói, e a dor me faz lembrar que estou viva.
Sangra, e o sangue me faz pensar que o coração ainda bate, bombeando
vida.
Penso, e o pensamento me faz notar que o cérebro segue a funcionar,
apesar das feridas.
O peito sobe e desce, avisando que só quem ainda vive pode passar
por mais este teste, e doer, cair, pensar e dançar. Sangrar. Inspirar e
expirar. Continuar.
– Espere! Não a enterre! Ela ainda respira!
Ainda dá pra salvar!
Por isso o luto não dura. O tempo, a tudo, cicatriza e coagula. Se
não cura, ao menos se aventura a refazer o que morreu.
A ferida, que latejava, sara e vira uma lembrança marcada de que
você sobreviveu.
O sangramento, que jorrava, cessa, seca, não verte mais o líquido
vermelho que tão bem a minha multidão conheceu.
Estou viva; resisto, persisto e procedo à morte.
Apesar do luto, quem diria, ainda tenho pulso.
Ainda trago comigo alguma sorte.
Sim, morreu um pouco de mim que eu gostava.
E dali nasceu um novo pedaço meu que eu não conheço, mas que pode
ser quem sabe o que eu não sei; cujo papel com o telefone anotado eu perdi
aquela vez, junto com um pouco de mim.
Espere, não me enterre; eu ainda respiro!
Eu estou viva e este não é o fim.
É só um suspiro cansado antes de subir neste novo ring.