Um uivo para Fausto Wolff
Fausto Wolff me ensinou que existe
um jogo em andamento.
Um jogo que eu e você não
jogamos, porque afinal somos as peças, não os jogadores. Algumas estão cientes
do jogo; outras não. Algumas acreditam que são jogadores; outras sabem que não
são.
Fausto Wolff sabia do jogo e
sabia que não jogava; era apenas mais uma peça em cima do tabuleiro, a bola de
bilhar ou futebol, as cartas sobre a mesa e sob as mangas.
Mas, ao contrário das demais
peças que, conformadas à sua condição inanimada, desempenham sua função sem dar
um pio, Fausto desgarrou-se do papel de mero utensílio. Recusou-se a ser só mais
um elemento inerte nas mãos de quem joga o jogo do qual nunca poderemos sair
vitoriosos.
Peças não jogam; logo, não podem
vencer.
Quinze anos atrás, quando
conheci Fausto Wolff, eu já desconfiava que havia algo errado no paraíso. Um
incêndio ardia sob a chuva fina. Alguma coisa não cheirava bem, eu podia
pressentir. O caminho que se esboçava, emprego-casamento-chefe-filho-prestação,
e para o qual eu suspeitava estar sendo empurrada, não me agradava em nada –
apesar de estranhamente parecer contentar a maioria daqueles que me rodeavam.
Foi Fausto quem apareceu e me
alertou sobre o jogo em curso. Foi ele quem me disse que não, não precisava ser
assim. Era possível ser a peça extraviada; aquela que veio com defeito de
fábrica e não serve para jogar. A que é torta e não se encaixa no
quebra-cabeça. Aquela que sobra e falta. Eu não era a única peça produzida em
escala industrial que se tornou imprópria para o consumo dos jogadores.
Não estávamos sós no universo
dos desgarrados.
As lições que não ensinam na
escola, na família e na igreja eu aprendi com as bofetadas da senhora vida e
com o papo reto do senhor Fausto Wolff. Ele me ensinou a ler o subtexto e a
reescrever as entrelinhas. O atalho pelo qual segui estava desenhado de cabeça
pra baixo no mapa que ele me entregou.
De modo que, quando Fausto partiu,
há dez anos, o mundo ficou mais chato, careta e sombrio. Mais silencioso e
comportado. Das mais de 400 mil palavras do dicionário, não houve uma que não
chorou a perda de um de seus maiores e mais loucos maestros.
Por sorte, para um escritor do
porte e do calibre de Fausto Wolff, sempre existe vida após a morte.
Porque ele ainda vive em mim, quando
peço desculpas e caio. Quando mato o cantor e chamo o garçom. Quando escrevo,
com a mão esquerda, cem poemas de amor e uma canção despreocupada. Quando
reconheço o lobo atrás do espelho e me lembro que o campo de batalha sou eu.
Assim como eu, peça extraviada do
tabuleiro, existem outras, muitas, muitas outras. E é ao lado delas que hoje eu
lamento os dez anos que penamos sem o velho lobo, que foi embora levando junto
sua metralhadora implacável de caracteres desordenadamente alinhados; sua mira
certeira, que atingia em silêncio, mas fazia gemer; sua artilharia tão pesada
quanto sutil; sua visão apurada, que via longe sem luneta. Dez anos sem este
franco-atirador lendário, literal e literário, que tanta falta faz na
trincheira, onde ainda resistimos.
Uma década é muito tempo sem
ele.
Mas, convenhamos, lamentar não
é do feitio de Fausto, nem que seja sua própria morte. Celebrar tampouco faz o
seu perfil, e não posso sequer imaginá-lo tomando champanhe e soltando foguetes,
festejando a si mesmo.
Sugiro, então, que ao invés de
chorar ou comemorar, sejamos para os outros quem Fausto Wolff foi para nós.
Que possamos alertar quem ainda
não sacou que é peça; que possamos extraviá-las, entortá-las, torná-las também
impróprias para o consumo.
Vamos contar ao maior número
possível de peças sobre o jogo que não jogamos; que não ganhamos; que não
podemos nem ao menos perder.
Isso sim satisfaria o velho
lobo.
Porque é assim, e somente
assim, que ele continuará vivo. E uivando.