Por que a violência contra nós não importa?


No dia 10 de agosto de 2018 o prefeito de Não-Me-Toque, Armando Roos, teve seu mandato cassado após denúncias envolvendo assédio sexual. O prefeito foi gravado trocando cargos públicos por favores sexuais, em um vídeo embaraçoso e grotesco que não deixa margens para nenhuma dúvida.
Contudo, no país do improvável, houve quem reclamou, achando tudo muitíssimo injusto: “a cidade perde um grande administrador”, alguns disseram. “Fez muito por Não-Me-Toque”, outros afirmaram. “Coitado, não merecia. É um bom homem”.
Um bom homem que assediou sexualmente suas funcionárias – o que faz dele um criminoso, já que assédio sexual é crime. E não sou eu quem está dizendo; é o artigo 216-A do nosso Código Penal. Sem contar que utilizar de sua autoridade e poder para constranger e perseguir quem se encontra hierarquicamente em posição vulnerável, além de crime, é moralmente repugnante.
Mas quem se importa, não é mesmo? O cara foi um ótimo administrador! Fez mais pela cidade do que qualquer outro! Melhorou a saúde, então pode assediar! Asfaltou as ruas, então tudo bem intimidar, coagir e violentar. É um grande homem; logo, tem o direito de trocar cargos e dinheiro público por sexo. Ninguém é perfeito; todos têm o seu teto de vidro. Quem nunca cometeu um crime previsto no Código Penal que atire a primeira pedra.
Choca-me e me ofende o quanto a violência praticada contra nós, mulheres, não choca e não ofende ninguém. É assustador perceber como sempre oferecemos um álibi ao agressor; como sempre existem atenuantes, explicações, motivos que legitimam a violência, no melhor estilo “rouba, mas faz”. Assedia, mas asfalta. Bate, mas marca gols.
Lembro que, certa vez, um jogador de futebol famoso veio defender a camisa de um dos maiores clubes do Rio Grande do Sul. Um belo dia, este famoso jogador bateu na namorada e o caso gerou grande repercussão nacional.
Mas e daí? “Não tenho nada a ver, me interessa que ele faça gols”. Foi o que eu mais ouvi naqueles tempos.
Marcar gols, asfaltar ruas, ser um grande administrador. Em troca, dou carta branca para que o jogador ou o prefeito façam o que bem entender quando ninguém está olhando. Bater na namorada? Pode, é só ganhar títulos. Assediar funcionárias? Pode também, contanto que asfalte as ruas.
Fico triste e me revolto porque nos violentar parece não importar. Porque vejo mulheres defendendo quem agride mulheres; desculpando a violência, justificando o que jamais poderia ser justificado: ela é puta, ela pediu, ela merece. Vejo mulheres que não percebem que, toda vez que qualquer mulher sofre qualquer tipo de violência, todas nós sofremos. Não é só sobre a namorada do jogador famoso, que apanhou, e nem sobre as moças que o prefeito tratou de forma nojenta e abjeta. Não é sobre “elas” porque não existe “elas”. Só existe nós. Tua filha, irmã, amiga, comadre. Tua mãe e tua avó, eu e você. Todas nós.
Quando o prefeito humilha e constrange suas subordinadas, ele constrange e humilha eu e você. Quando o jogador do nosso time do coração espanca a namorada, ele me espanca e espanca você.
De modo que não importa quantos gols o sujeito fez e nem quantas ruas ele asfaltou: são criminosos. E é como criminosos que merecem ser tratados.
Sabe por que, colega?
Porque a violência contra nós importa sim, mesmo que muitos ainda digam que não.

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