A exceção que deu certo continua sendo exceção


Vez ou outra surge na televisão ou no Facebook uma história de superação heroica: o cara que trabalhava 14 horas por dia catando papelão e se formou em Medicina. A criança que caminha 20 quilômetros para ir até a escola e ganhou um prêmio internacional de matemática. A mãe que formou na faculdade os cinco filhos trabalhando como doméstica.
Histórias incríveis de pessoas que, apesar da pobreza, das limitações, dos preconceitos, das dificuldades, prosperaram e venceram, contra tudo e contra todos.
Aí a criatura que nunca catou papelão, e muito menos trabalha 14 horas por dia; aquela que o pai levava e buscava na porta da escola; a mesma que já está cursando sua terceira faculdade, vem e me diz:
– Viu? É só querer!
Claro, é o mais fácil.
Focamos na exceção que deu certo, e ignoramos a enorme massa que “não deu certo” (também conhecida como: a regra), empurrando sobre ela toda a responsabilidade por sua condição.  
Assim, conforme esta ótica, os catadores de lixo não se formam em Medicina “porque não gostam de trabalhar”. As crianças que caminham muitos quilômetros para estudar não ganham prêmios internacionais “porque não querem”. E as empregadas domésticas não pagam a faculdade dos filhos “porque não se esforçam”. Afinal, tudo é questão de meritocracia, ou não?
Não.
Ignoramos sumariamente o fato de que, dos milhares que catam papelão Brasil afora, UM se formou. Das centenas de crianças que caminham verdadeiras jornadas para poder estudar, UMA ganhou o prêmio de matemática. E das dezenas de empregadas domésticas, quantas você conhece que conseguiram formar os filhos em uma faculdade?
São números tão pequenos que sequer entram para as estatísticas, e por isso são chamados de “exceções”.
Sem contar que é até revoltante conhecer estas histórias, e perceber como é incrivelmente difícil para o pobre sair da pobreza por aqui. É preciso ser um verdadeiro herói, alguém digno de uma reportagem na TV contando sobre sua trajetória de bravura, superação e determinação.
Este tipo de história deveria nos indignar, antes de nos emocionar.
Mas é cômodo pensar que, se UM conseguiu, todos podem, “basta querer, basta trabalhar, basta se esforçar”. É bem mais confortável se agarrar nas honrosas exceções para maquiar a regra: a de que somos um país injusto, que está longe, muito, muito, muito longe de oferecer aos seus filhos oportunidades, se não iguais, menos desiguais.

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