A liberdade de nada ter

Certa vez li em um livro, cujo nome não me lembro, que só é possível ser livre de verdade quando você não possui nada. Família, emprego, relacionamentos, religião, carro e boleto: são todos meios de nos prender. A família te segura, o emprego te disciplina, o relacionamento te cobra, a religião te vigia e pune, os bens de consumo te consomem.
Não questiono aqui o lado bom da família, do emprego, dos relacionamentos, do consumo e da religião, que é óbvio que existe. Mas quero apontar um problema que, de uns tempos pra cá, bateu na minha cara com toda a força: somos prisioneiros da nossa própria vida. Fazemos escolhas que, ao invés de nos libertar, nos encarceram. Caminhamos pé por pé até uma cela pequena e limitada, e por livre e espontânea vontade entramos, trancamos a porta e jogamos a chave ralo abaixo. Somos uma fábrica de cadeados, que usamos para prender nossos próprios punhos.
Todavia, é importante observar: até que ponto nós realmente fazemos escolhas? Quantas das decisões que julgamos nossas não foram tomadas por outros, muito antes da gente sequer existir?
Ora, nós aprendemos desde o berço: o negócio é nascer, crescer, se formar, um emprego, uma namorada, noivado e casamento, os filhos, os netos, a aposentadoria. Um orgulho pra família, um funcionário exemplar, um provedor responsável, paga as contas direitinho. Já está tudo escrito! E quando nos damos conta, estamos tão envolvidos pelos tentáculos da nossa própria vida que já não há mais como escapar.
Nossa mente grita por libertação, mas nosso corpo apenas se cala e consente. O coração protesta, o peito aperta, a angústia judia, o sono não vem; mas a razão diz que é assim mesmo, é assim que tem que ser, é assim que sempre foi, sempre será. Os tentáculos prendem forte, as pressões vêm de cima, de baixo, dos lados, pelas diagonais. As cobranças, os relógios, os carros, nada cessa, nada perdoa. E a nossa essência, aquela que deveria dar sentido e sustento para nossa vida, perde-se no meio de tanto barulho e de tantos TEM QUE.
Somos, na verdade, seres solitários, que viram na vida em comunidade um meio de sobreviver. Isso data lá dos tempos das cavernas. Sozinhos, humanos eram mais facilmente vitimados por animais selvagens e tribos inimigas. Assim passamos a viver em sociedade, e a nos adequar aos códigos de conduta desta sociedade – mesmo que estes códigos nos agridam e nos sufoquem, mesmo que não façamos ideia de quem os criou.
E para TER é preciso barganhar, dar algo em troca. Você é dono dos bens, mas os bens também são donos de você. Você tem um emprego, mas o emprego também tem você. Você possui compromissos e horários e responsabilidades, mas os compromissos, horários e responsabilidades também possuem você.
Você tem as coisas, as coisas têm você. E aí você fica; se cala; obedece; aceita e sorri. Você respira fundo, segura na mão de deus e vai. 
Por isso, quem não tem nada, tem a liberdade. Não será dono de coisa alguma, e coisa alguma será sua dona. Haverá um preço a se pagar, lógico, mas é o que a liberdade cobra: sem cela, sem cadeados, sem nada.
Parece assustador.
Não estou disposta a não ter nada. Sou cria da mesma sociedade que você, e me acostumei, e até gostei, das regalias e confortos que uma vida com raízes e cercas é capaz de oferecer. Contudo, tampouco estou disposta a jogar ralo abaixo a chave que abre a porta da cela. Esta eu deixo comigo, no bolso da minha calça, enquanto sigo aqui dentro.
Porque mesmo que eu não saia nunca, alivia saber que eu posso sair quando eu quiser.

assinado Jana.

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