Futuro para quem tem fome
Eu moro
em um bom bairro de Carazinho. Pelo menos dois dos meus vizinhos mais próximos vivem
em verdadeiros casarões. Apesar disso, apenas três quadras daqui tem uma
favela. Sim, existem favelas em Carazinho, amigão! E esta, a poucos metros da
minha casa e dos casarões, fica atrás do CAIC e é conhecida como Beco da
Cuiabá. Quinze anos atrás, aquele local era um descampado onde cavalinhos pastavam
na santa paz de Deus. Agora, são centenas de casinhas e casebres e pessoas e
crianças amontoados sem qualquer estrutura. A pobreza nua e crua, sem maquiagem
e trilha sonora.
Em
frente à minha casa e pertinho dos casarões, há alguns anos também colocaram um
contêiner de lixo. Bem de frente pra janela da nossa sala, como uma tela da
desigualdade obscena que devasta nosso país. Todos os dias, religiosamente,
passam por ali mulheres, crianças, jovens, grávidas, adolescentes e idosos, seres
humanos, que se embrenham dentro do contêiner imundo atrás de lixo. De
latinhas. De papelão. De comida. Certa vez, meu pai colocou ali no chão os
restos do almoço, para os cachorros de rua. E qual não foi sua surpresa quando
viu uma moça pegando aqueles restos do chão e comendo com as mãos, sentada na
sarjeta.
Desde o
início da pandemia, é visível o aumento no número dos catadores de lixo. Falo porque vejo da janela da minha casa – e você
provavelmente vê da sua. Porém, apesar disso, a Prefeitura Municipal de
Carazinho, por meio da Secretaria
de Desenvolvimento Social em parceria com o Centro de Referência de Assistência
Social (CREAS), teve a brilhante ideia de lançar esta campanha, cuja foto compartilho
logo abaixo. “Não dê esmola, dê oportunidade
– Sua esmola alimenta uma falsa esperança”.
O Cazuza pediu e o Brasil está
finalmente mostrando a sua cara. Ou melhor dizendo, o Brazil. Com Z.
Essa
merd@ de campanha, que só pode ter saído da mente lunática ou canalha de alguém
completamente descolado da realidade, tem tantos problemas que eu nem sei por
onde começar.
Primeiro:
quem tem fome tem pressa, rapaziada. Essa balela de ensinar a pescar em um rio
seco é conversa mole pra acalmar a consciência de classes privilegiadas, que
acham que fome é o que eles sentem entre o almoço e a janta. Pessoas que juram
que “não existe miséria em Carazinho”. Que preferem pedir que a prefeitura
retire o contêiner de suas portas porque né? Perturba a sua existência cor-de-rosa.
Pessoas que, mesmo com uma favela a poucos metros de suas casas, só veem o que
querem e convêm.
Segundo:
estranho. Antes da eleição, distribuir cesta básica na periferia da cidade estava
valendo.
Terceiro:
“dê futuro?”. “Dê oportunidade?”. O que isso significa exatamente, cara
Prefeitura Municipal de Carazinho? Contratar o pedinte para cortar a grama da
minha casa? E ele vai fazer isso com que equipamento? Devo, enquanto
empresário, dar emprego? Como, se estamos todos falindo? Como, se boa parte
destas pessoas vive na completa indigência, não tendo sequer documentos ou um
endereço para preencher um cadastro?
Quarto:
quem pode e deve dar futuro e oportunidade às pessoas é você, poder público.
Por isso pagamos impostos e elegemos pessoas e partidos a cada quatro anos. Já
passou da hora da gente compreender o que é papel do cidadão e o que é papel do
poder público. Eu, enquanto cidadã, posso dar um prato de comida, auxiliar em
alguma necessidade emergencial, colaborar com uma ONG, comprar um chocolate para
o menino de rua ou dar R$2 ao artista que faz malabares no sinal. Afora isso, na
prática, posso muito pouco.
Mas
sabe quem pode dar futuro e oportunidade às pessoas, poder público? VOCÊ! Trazendo
investimentos e gerando empregos, por exemplo. Podia, quem sabe, ter mantido em
nossa cidade o Centro Municipal de Ensino Profissionalizante (CEMEP), gratuito
e custeado pela prefeitura, mas que acabou em 2017. E o que falar do Instituto
Federal Farroupilha, que oferecia cursos profissionalizantes gratuitos para a
comunidade mais vulnerável? Aquele mesmo, que você perdeu em 2019 por puro e
retumbante descaso, lembra? Mas que nada, Carazinho é “cidade educadora”, diz
aquela placa!
Eu juro que não
sei se é burrice ou mau-caratismo. Acho que é tudo isso misturado. Porque, ao invés de estimular entre as
pessoas o senso de coletividade, de empatia e solidariedade, de ajudar quem
mais precisa, principalmente em tempos como este, de miséria exposta,
a Prefeitura Municipal de Carazinho decide lançar essa ideia totalmente
desconectada dos fatos e, sobretudo, escrota e egoísta. Um desserviço completo
e retumbante que, além de não ajudar, atrapalha.
Sabe o que eu
acho? A pandemia revelou o que nós, classes privilegiadas, sempre olhamos para o lado para não
ver: a enorme e inaceitável desigualdade de nosso país, de nossa cidade. A pobreza
saltou aos nossos olhos e esfregou em nossas fuças e feridas uma realidade que nos
esforçamos para ignorar. E aí, desesperados, seguimos repetindo estes conceitos
caducos, agarrados nas boias furadas de nossas velhas crenças, que já eram velhas
quando nossos bisavós as repetiam, dois séculos atrás. Crenças que não maquiam
mais a nossa face perversa.
Eu me
lembro, desde que eu era criancinha, de ouvir os adultos dizendo que não
devíamos dar nada para as crianças de rua, pois “suas mães estavam na esquina
bebendo”. Que é “tudo pra comprar droga”. Que não sei quem ganhou não sei
quanto em um único dia, pedindo no semáforo. Lembro até de uma lenda, na qual
uma das moradoras de rua mais célebres de Não-Me-Toque tinha uma mansão com
piscina não sei onde. Fake news dos anos 90.
Mas se
o cara ganhou R$200 pedindo no semáforo, por que você não larga o emprego que
te paga R$50 por dia e vai pro sinal, ô mané?
Estas pessoas, que são “contra o assistencialismo”; essa galera
do “ensine a pescar”; são as mesmas que, no Natal, pegam uma cartinha do Papai
Noel nos Correios, compram uma bola de 5 pila e se sentem muito cristãs.
Cuidado, amigo leitor! São tipos perigosos!
E por
último, mas não menos importante: que porr@ de assistência social é esta que a
gente tem em Carazinho? Porque não é possível que a nobre secretária de nosso
município simplesmente não conheça a realidade periférica da cidade que deveria
assistir. Se ela vier uma única vez ao Beco da Cuiabá e caminhar entre os
casebres e conversar com as pessoas e entrar em suas casas e olhar para suas
geladeiras, quando tem geladeira, é impossível que continue repetindo esse
discurso ordinário de ensinar a pescar.
Inclusive
deixo o convite para a prezada secretária. Dá um pulo aqui no Beco da Cuiabá,
meu anjo, e depois vem me falar em dar futuro para quem tem fome.